Em junho de 2013, o gigante brasileiro acordou, em manifestações que começaram contra um aumento de R$0,20 nas tarifas do transporte público da cidade de São Paulo, e terminaram fornecendo um caldo para a deposição da presidente Dilma.
Diferentemente do Brasil, o gigante sul-africano começou a adormecer em 2009, quando Jacob Zuma assumiu e, juntamente com os Gupta, uma família indiana, instaurou o “Estado de Corrupção”, corroendo a gestão da frágil infraestrutura do país em diversos setores, entre eles, o de geração e distribuição de energia elétrica, por meio da Estatal Eskom.
Em 1994, quando Mandela assumiu a presidência do país África do Sul, além do fim do apartheid constitucional, iniciou-se também um processo de implementação de serviços básicos, entre eles a distribuição de energia elétrica para cerca de dois terços da população, em regiões antes preteridas pelo apartheid. Essa legítima e importante ação de Mandela gerou resultados, porém, passou longe de conseguir criar um mecanismo para responder a toda a demanda de geração e transmissão de energia, mesmo que o país não crescesse em termos econômicos e demográficos.
Como esperado, o tempo passou, e a Eskom – a empresa estatal responsável por 90% da produção e 100% da transmissão de energia – sucumbiu, não apenas pela improvável capacidade de somente uma empresa atender todo um país, mas acima de tudo, pela má gestão administrativa que interferiu na manutenção da infraestrutura da empresa.
A magnitude da corrupção é digna de paralelo comparativo com a pilhagem dos escândalos da Petrobras. Entre 2007 a 2019, a Eskom apresentava um déficit financeiro que escalou de 40 bilhões a 420 bilhões de rands (US$30 bilhões, nos valores da época). Os esquemas de Jacob Zuma e da família Gupta que desviava recursos da Eskom, inflacionando contratos de serviços, gastando cinco vezes mais com carvão e três vezes mais com funcionários, resultou ao final uma capacidade de entrega de energia inferior a 2007, por parte da Eskom.
Mas nesse meio tempo, por imposição do tesouro nacional, foram criadas condições para que atores privados participassem no mercado de geração de energia, por meio de leilões, injetando 14 bilhões de dólares no mercado, e cerca de 5.000 Megawatts. Porém esses investimentos foram hibernados em 2015, quando a Eskom se recusou a assinar projetos independentes de energia, em benefício de uma negociação entre Jacob Zuma e Vladimir Putin para a instalação de usinas nucleares.
Assim, como legado da sua corrupção, que culminou com o seu impeachment, Jacob Zuma deixou um déficit 6.00 MW, devido aos atrasos para a construção de novas usinas e manutenção das existentes, quando detinha o monopólio vertical da Eskom.
Diferentemente do Brasil, onde a estrutura hidrográfica permite a manutenção de uma base energética, proveniente de uma fonte limpa que é a água, a África do Sul herdou do governo inglês um sistema de produção energética à base de carvão, que representa atualmente mais de 80% da fonte de energia do país. Outro abacaxi da herança inglesa é a burocracia do setor e a centralização do sistema na Eskom.
Explico: a Eskom é como se fosse a Santíssima Trindade, ou seja, o começo, meio e fim, pois, para que qualquer agente privado ingresse no mercado para produzir e/ou distribuir energia, é necessário o seu aval, já que ela é a detentora única do sistema de transmissão.
Entenda, caro leitor, que eu não advogo em benefício da anarquia do setor, aquele modo em que os agentes privados fazem o que bem entende. Ao contrário, eu sou favorável à existência de agências reguladoras fortes, como a ANEEL no Brasil. Contudo, no caso da Eskom, ela é praticamente a agência reguladora do setor no país, uma vez que toda a cadeia está centralizada nela.
Mas claro, eu relatei um problema que está longe de ser a única lenha da fogueira. Voltando à comparação, entre os vários argumentos dos críticos do monopólio da Petrobras no Brasil, está a alta propensão da empresa transformar-se em cabide de empregos e centro de ineficiência, uma colmeia de abelhas para o mel da corrupção. Na Eskom, essas variáveis desfilam a olho nu em frente a tudo e a todos.
O sindicato de mineiros que atendem as minas de carvão é quase que um poder paralelo dentro da Eskom. Para toda e qualquer ação de melhor dinamizar o setor, até a presente data, os mineiros foram uma força contrária, principalmente em relação ao avanço de políticas com o objetivo de abrir mais espaço à energia de fontes renováveis, por entenderem que a produção de energia de outras fontes que não o carvão impacta negativamente no mercado de trabalho para a categoria.
Além do sindicato, existe a máfia dos prestadores de serviços, que influenciam, de certa forma, os tomadores de decisão do governo central. Uma prática muito comum atualmente é a sabotagem de centrais de transmissão de energia, ou de usinas geradoras de energia, ligadas às vezes a empresas que prestam serviços de manutenção, ou mesmo a políticos de oposição com interesse de enfraquecer ainda mais o Estado.
Mas a cereja do bolo dessas sabotagens é quando os sabotadores estão ligados a figuras do alto escalão do governo, o que lhes dá poder de pressionar a Eskom para a contratação de serviços de empresas aliadas, que, em contrapartida, financiam as campanhas eleitorais.
Claro que não podiam faltar os simpatizantes da Marina Silva, ou seja, ambientalistas que, com uma dose de razão, duas de idealismo e três de inconsequência, querem a todo custo, e nos prazos de “para ontem”, a transição da matriz energética de carvão para fontes renováveis, como a eólica e a solar. Agora apoiados por fundos da União Europeia e dos Estados Unidos, também têm ganhado força.
A esta altura, talvez o leitor esteja pensando que não queria estar na pele do presidente sul-africano, que tem poucos recursos para cortar, pela raiz, o mal da corrupção, por ser parte do partido que governa o país há quase três décadas.
Com uma dívida de R$72,3 bilhões, a Eskom opera atualmente com pouco mais de 53% do seu número total de usinas. As usinas que não estão operando foram paralisadas por problemas de várias naturezas que podem ser resumidos em falta de manutenção. Isso tudo impõe aos cofres públicos sul-africanos um déficit diário de R$257 milhões, devido à incapacidade para atender a demanda.
Somados aos impactos sociais negativos, o governo atual está implementando a “redução de carga”, um eufemismo para justificar os apagões programados em todas as regiões do país. Sim, para evitar o colapso, a Eskom faz cortes diários rotativos do fornecimento de energia.
Por óbvio, os impactos sociais dessa medida são inúmeros, começando pelos problemas de trânsito causados pela falta de eletricidade nos semáforos, passando pelos serviços funerários, e até para as mineradoras de carvão – que ironia – as responsáveis por extrair o carvão que alimenta as usinas.
Diferentemente da realidade dos países vizinhos, onde a agricultura de precisão ainda é uma realidade distante, na África do Sul o uso de equipamentos para irrigação, colheita e outras fases da produção tem crescido bastante. Mas na atual situação, os equipamentos que serviriam para redução de custos acabam representando hoje um aumento no custo, por demandar um investimento em geradores e manutenção do diesel. Nessa mesma situação da produção agrícola está a criação de ovos e de frangos, um setor cuja cadeia é hiper interligada e depende integralmente de energia.
Responsáveis pelo emprego de mais de 80%, numa economia onde a taxa de desemprego está acima de 30%, as pequenas e médias empresas são as mais impactadas. Nos restaurantes, por exemplo, o cenário é de quase completa falência, devido à falta de confiança dos clientes, porque crescem cada vez mais as dúvidas a respeito da qualidade dos produtos, diante da falta de energia e de geradores para manter a refrigeração, uma vez que os cortes diários da Eskom podem chegar facilmente a 10 e até a 12 horas por dia.
O adágio popular que diz que “enquanto alguns choram, outros vendem lenços” nunca fez tanto sentido quanto agora, na África do Sul. Desde os flanelinhas, que ganham uns trocados para ajudar a regular o trânsito, quando os semáforos estão fora do ar, até as multinacionais de energia, que estão entrando no setor.
A Copenhagen Infrastructure Partners adquiriu, em março deste ano, a Mulilo Energy Holdings, uma das maiores empresas de energias renováveis no país, impulsionada pela estrutura regulatória funcional e pelo histórico de pagamentos das parcerias público-privadas – a Eskom honrou com os pagamentos da energia fornecida.
Em paralelo, está crescendo a instalação de energia solar privada e doméstica, mas ainda falta mão-de-obra técnica no país. O Brasil vive um momento diferente, pois as empresas desse setor possuem um mercado com mão-de-obra relativamente qualificada e instituições para formar instaladores, por exemplo.
Então, diante de todo esse contexto, qual é a proposta concreta de solução? Quais são as alternativas reais que o país tem? E claro, quais são as reais chances de uma empresa brasileira se instalar lá? Essas questões ficam reservadas para um segundo artigo. Por hora me despeço por aqui
Por Paulo Manuel