“Quando tiro não vos mata, quem vos mata é quem dispara”, nos fazia Mexer o Bumbum no Combio do Kuduro, onde era o Estado Maior. Gelson Caio Mendes – melhor dizer, o Nagrelha – tombou em 2022, assim como o Cão de Raça, em 2023.
Forjado nos musseques de Luanda, Gelson nasceu e cresceu à margem de qualquer expectativa, tal como nasce e cresce um funkeiro da favela. Mas num país onde as Range Rover coexistem com esgotos que clamam por saneamento básico desde antes da lei do ventre livre no Brasil, crescer num musseque é um atestado de heroísmo. Heroísmo não apenas pelas mbaias que são necessárias para fugir aos convites do imediatismo que conduzem a delinquência, drogas ilícitas e afins, mas também pelo sacrifício indescritível das zungueiras que acordam o asfalto às cinco da manhã, com o anúncio dos seus produtos. Produtos estes que financiam não apenas o barulho das panelas e das baratas de casa, mas também os estudos dos muitos filhos que hoje estão pelo país e mundo afora, dignificando o sacrifício das suas guerreiras mães.
O heroísmo do musseque de Luanda forjou homens e mulheres nas carteiras, e formou também ícones que, pelo estilo originário, trouxeram ao asfalto as dores, alegrias, necessidades e abundâncias da sua realidade. Entre elas está Nagrelha – Estado Maior do Kuduro, alguém que cravou o seu nome na história, pela sonoridade singular que abraçou o ritmo das batidas e rimou de forma poética as letras escritas por Andeloy, o compositor do grupo.
Sim, grupo, pois o Nagrelha – Estado Maior do Kuduro (como muitos de nós que vivemos a filosofia Ubuntu, mesmo sem saber) fez dos Lambas um grupo que nasceu na onda da sua época, em que o barato era constituir um grupo de kuduro para representar a sua banda. E felizmente foi além disso: as letras que denunciavam as mazelas sociais fizeram do Sambila uma localidade conhecida, aumentando sua visibilidade e atraindo jovens para esse estilo de música.
Mas Nagrelha não foi unanimidade, nem ficou famoso como símbolo de liderança social, tal qual Mandela, Ghandi ou qualquer outro. Ele viveu uma realidade dolorosa, entre fama e reconhecimento, silêncio e fome, num país onde a classe que governa se vê atolada na incompetência de alguns, na ganância dos outros, na arrogância dos demais, na boa vontade e capacidade de poucos; um país que não aprendeu como se equilibrar entre o mínimo das demandas sociais e a sede do enriquecimento pessoal.
E é por isso que ele foi o cão de raça?
Bem, primeiro é importante referir que nessa menção, o termo cão de raça tem a mesma conotação que cachorro de sala. Sim, aquele cachorro lindo, peludo, limpinho, que até usa roupa em alguns casos, por isso se sente especial em relação a outros cachorros que não passam da porta do quintal. Se o Nagrelha foi ou não um cão de raça, é meio controverso, porque numa realidade onde a segurança financeira só é garantida, quando muito, por sete dias para a maioria das pessoas, quase todo mundo se comporta como cão de raça para não perder a ração.
Mas felizmente os musseques também são escolas para formar pessoas que parecem imunes à fome e não se curvam às carícias e ao conforto momentâneo do tapete da sala. São incontáveis exemplos: Samora Machel, Jonas Savimbi, Tomás Sankara, nos momentos de luta pela independência, e MCK, Brigadeiro 10 Pacotes, e o recente póstumo Azagaia.
Azagaia, nome artístico de Edson da Luz, nasceu em Namaacha (Moçambique), e com treze anos de idade começou a afiar as suas músicas, retratando de forma nua e crua a realidade do seu país. Inspirado por diversas referências que tiveram seu sangue derramado pela independência, Azagaia viu os problemas sociais sendo servidos como um banquete e não demorou a entrar na lista das pessoas visadas pelo governo moçambicano, tal como acontece em qualquer realidade, quando alguém denuncia de forma enfática e persistente as mazelas sociais. Não é um exagero dizer que Azagaia está para Moçambique, assim como os Racionais e tantos mais estão para o Brasil, não apenas pelas músicas que retratam o cotidiano dos desassistidos pelo Estado, mas também pelos bloqueios e até censuras que sofreram na propagação da sua arte. Contudo, quando se pode contar com a voz do povo – a maior plataforma de distribuição que qualquer artista almeja – para cantar e espalhar as suas músicas, a proibição na TV estatal se torna quase insignificante. O que também aconteceu com Bob Wine, no Uganda.
Mas Azagaia se foi, vítima da epilepsia, doença que lhe acompanhou ao longo de sua jornada na terra. Aos Moçambicanos e ao mundo, ele deixou como contribuição a sua obra, com repertórios como Cães de Raça, As Mentiras da Verdade, Ai de Nós, Minha Geração entre tantas outras músicas.
Glossário
Banda – bairro, região
Mbaias – fintas, desvios
Musseque – favelas, guetos
Por Paulo Manuel.