Ao saltar dos olhos e das narrativas pré-concebidas, a pronta resposta para essa questão nos direciona para uma crise étnica. Mas, não. A resposta é que é política, instigada por diferenças étnicas, assim como as crises do Líbano e do Sudão do Sul. E também podem ser equiparáveis as pautas conservadoras e progressistas que polarizaram as eleições no Brasil, na França e colocaram a Itália na extrema direita.
- Origem
Diferentemente da realidade de alguns países africanos, em que os adversários políticos ainda estão de alguma forma ligados às legendas que lutaram pela independência, no Sudão, além da rivalidade evoluir para conflito, os atores também evoluíram de outra base.
Tal base é um clamor popular que depôs o governo de Omar al-Bashir, o ex-presidente que, com punhos de ferro, teias de corrupção e ineficiências nas políticas econômicas, dirigiu o país por 30 anos – até 2019, ano da sua queda.
Antes, Omar al-Bashir teve a brilhante ideia de contratar uma milícia, para reprimir os “insurgentes” de Darfur nos anos 2000. E como cereja do bolo, essa milícia rendeu ao seu líder concessões para exploração de ouro, e a legitimidade de um exército independente chancelado pelo congresso em 2017.
- A milícia RSF
É incrível como a história se repete, quando se observa a ascensão de soldados de baixa patente, indivíduos de baixo nível acadêmico e afins. Hitler, Idi Amin, Bolsonaro, e Mohamed Hamdan “Hemedti” Dagalo, foram esculpidos pelo exército, financiados e apoiados por uma elite financeira, que na gana de proteger seus interesses, taparam o sol com a peneira, na macabra ideia de que os controlariam.
Hemedti é um aluno com apenas a 3ª série de formação convencional, porém, com algo equivalente a um pós-doutorado na hostil universidade da sobrevivência do seu país, onde muitos o caracterizam como ladrão de beira de estrada, e outros, como um vendedor de camelos.
Originada como uma milícia qualquer – semelhante às milícias do Rio de Janeiro e da Líbia -, a Rapid Support Forces (RSF) juntou-se ao seleto grupo de cases de sucessos de milícias pelo mundo, quando o presidente do país, os contratou para reprimir a população de Darfur, que protestava pela exploração dos seus direitos básicos pela elite local.
Cumprido o seu papel, e sedento por poder financeiro, como qualquer líder miliciano, o general Hemedti consolidou seu poder interno, prendendo Musa Hilal, líder rival. E ingressou na exploração de minas de ouro, ferro, aço, transporte e aluguel de carros, setores que o coroaram como um dos homens mais ricos do país, conforme referido por Alex de Waal, em 2019.
Da mesma forma que Bolsonaro, nas eleições de 2018, ele soube explorar muito bem a pauta “anti-corrupção / anti-establishment”, nas redes sociais, pois entendeu muito bem que, para a manutenção e extensão do seu império, era necessário dialogar com a comunidade internacional, dentro das plataformas e na linguagem que lhe conferisse credibilidade. Para tanto, posicionou a RSF como um defensor dos direitos humanos, e legitimou-se, contratando um treinamento da International Commitee of the Red Cross (ICRC), em 2021. Mas tudo isso foram apenas pequenas ações com o objetivo de distanciar a sua imagem das atrocidades cometidas nos anos anteriores, por ele mesmo confessadas.
- Adbel Fattah al-Burthan
Considerando a realidade brasileira no contexto do governo Bolsonaro, não é um exagero equiparar Adbel Fattah al-Burthan ao general Braga Neto, em termos de inteligência, capacidade de liderança e articulação. Ambos são, acima de tudo, articuladores com foco total em um objetivo: o poder político.
Formado na academia militar do seu país, Burthan tornou-se “imbrochavel” depois da sua formação no Egito, de onde retornou hábil o suficiente para ocupar o cargo de Inspetor Geral do Exército. Mas Burthan não é um militar de escritório, não. Ele consolidou sua reputação envolvendo-se em todas as atrocidades do governo que liderou o país por 30 anos. E, por alguma razão, saiu ileso das acusações dos crimes de guerra que mantiveram nos bancos dos réus os seus antigos colegas de farda. Ele próprio foi um elemento-chave para a contratação e empoderamento da RSF.
Com o caldo começando a entornar em 2018, pelas manifestações que começaram em protestos por escassez de pão, e que ao final evoluíram pedindo a deposição do governo, Burthan articulou com Hemedti a deposição do presidente Omar al-Bashir, tornando-se juntos “imbrocháveis” num governo de transição que duraria 21 meses no máximo, e culminaria com a eleição de um governo civil.
Mas a dupla alterou os planos, operando o “sonho da coalizão Bolsonaro-Braga Neto”: impediram a realização das eleições e, como parceiros de longas repressões, tomaram o poder, com a promessa de que criariam as condições para um governo civil eleito.
- Atores regionais
Ladeados por monarquias, ditaduras e semidemocracias, numa região que, no mínimo, podemos chamar de zona de tensão, os sudaneses vivem numa encruzilhada e tanto.
Entre os vizinhos mais democráticos, está a Etiópia, que, embora goze de uma estabilidade política internamente, vive também uma situação para lá de paz armada com os tigrinhos – uma etnia local que, com apenas 6% da população, liderou a guerra contra o regime comunista de Mengistu Haile Mariam, antes de cair em 1991, e liderou os destinos políticos do país por muito tempo.
Mesmo com um tímido poder de influência sobre os principais atores dos conflitos no Sudão – porque não molha o bolso para aumentar a sua influência – a Etiópia é um dos poucos países da região que tem intenções mais reais de que os vizinhos encontrem a paz e devolvam o poder aos civis. Porém, a Etiópia encontra-se num impasse com o Egito, pelo controle do rio Nilo.
O Egito, por outro lado, vivendo uma semidemocracia que já foi comandada por um general (Hosni Mubarak), além de fornecer apoio logístico e militar para Burthan, não demonstra interesse legítimo em que os sudaneses vivam sob uma real democracia, com receio de que os clamores sociais dos sudanes inspirem os povo egípcio a embarcar numa segunda primavera árabe.
Porém, são a Líbia e os Emirados Árabes Unidos que estão entre os mais eloquentes para que os sudaneses não provem o gostinho de uma democracia. Para a Líbia, o sonho é que o Sudão viva sob um eterno governo de transição, como acontece por lá, onde os militares e a milícia Wagner fazem a festa com as receitas do petróleo. Já no caso dos Emirados Árabes Unidos, além de emprestarem 5 milhões de dólares para o “Sudão”, eles estão entre os principais financiadores de Hemedti, e inclusive contrataram os seus serviços nos conflitos do Yemen.
- Qual é a reivindicação real?
Disfarçada de uma reivindicação pelo controle das forças armadas do país, o que os dois generais querem é, na realidade, o controle das receitas das minas de ouro, simples assim. Mas, claro, isso passa inicialmente por controlar o exército do país, que deu suporte ao antigo governo, e efetivamente governa.
O pequeno detalhe está no fato de que as chances de convergência de interesses são realmente muito pequenas – não há um meio termo, semelhante ao que ocorreu na era Bolsonaro, quando o centrão comandava por meio da ameaça do impeachment.
Então, diante de todo esse contexto, qual é a vontade popular? Qual é a situação atual? Qual é o provável desfecho? Essas questões ficam reservadas para um segundo artigo. Por hora me despeço por aqui.
Por Paulo Manuel